Acredito que ao menos duas palavras chaves deste artigo não sejam usuais no mundo cervejeiro: geek e startup da cevada. Sendo assim, para tentar torná-lo mais didático, arriscarei situar o leitor acerca destes termos, uma vez que estão intimamente relacionados a cerveja que escolhi para comentar neste mês: a Wäls 42 Farmhouse Ale.

 

Num passado não tão distante, o termo geek poderia ser tomado por pejorativo, pois comumente designava ou estava associado a um sujeito esquisito, bobo, um tanto excêntrico, que normalmente usaria aqueles óculos fundo de garrafa, pulôver xadrez, suspensório e a camisa abotoada até o pescoço. Um visual deste que certamente lhe garantia certas dificuldades nos relacionamentos afetivos. Ao menos é isto que alguns seriados da televisão a cabo exploram ainda hoje.

Portanto, neste contexto, o geek seria um parente próximo do nerd. Mas além de “CDF”, o geek é viciado em HQs e tudo o que orbita o mundo dos superheróis, dos vídeogames e, principalmente, das novidades eletrônicas (incluindo a música eletrônica), os computadores e a internet. Mas não se engane ou se envergonhe se você reconheceu traços geeks na sua personalidade. Ser geek está na moda! Tanto pelo estilo de vida e pelo seu novo jeito de se vestir, considerado cool, quanto pelas posições ocupadas por eles no mercado de trabalho, especialmente nas empresas do tipo startups ou de tecnologia. Mas não é por isto que são citados neste artigo. O motivo é porque a cervejaria mineira Wäls fez a 42 Farmhouse Ale em parceria com alguns geeks, funcionários da Google América Latina, também chamados de Googlers.

Não descobri por que Cervejaria Wäls convidou os Gloogers para fazer esta cerveja em parceria, por isso ficarei na inferência e farei uma comparação um tanto anacrônica entre os trabalhadores da Google e o contexto de origem do estilo Saison/Farmhouse Ale no sul da Bélgica.

Um breve histórico do estilo Saison/Farmhouse

As cervejas do estilo Saison/Farmhouse Ale foram criadas na região de Valônia (Wallonie), situada no sul da Bélgica, onde o idioma predominante é o francês. Portanto, vale lembrar que saison significa estação do ano e as cervejas fabricadas neste estilo tem como propósito serem guardadas e consumidas em determinadas épocas do ano.

No final do inverno e início da primavera, quando a demanda por trabalho no campo era menor, os trabalhadores rurais produziam este tipo de cerveja, aproveitando as baixas temperaturas para reduzir a contaminação, mais propagadas no calor. O objetivo era que a cerveja fosse consumida pelos próprios camponeses no verão e outono, celebrando a colheita, por isto uma das características do estilo é a refrescância.

Além dos lúpulos, usados em vários momentos do processo de fabricação, diversos outros temperos também eram utilizados para ajudar a preservar e dar jovialidade a cerveja, assim, ingredientes como o anís, o gengibre, o coentro, o cominho, a pimenta, a casca de laranja, a casca de limão, entre outros, eram e ainda são comuns nas cervejas deste estilo. Além disso, como a sanitização naquela época não era tão eficiente, era comum que estas cervejas apresentassem acidez e outras características devido a atuação de bactérias e fungos selvagens adquiridas durante o processo. Características como estas são muitas vezes desejáveis e incluídas propositalmente nas cervejas deste estilo produzidas atualmente, especialmente naquelas que levam alguns tipos específicos de leveduras, como a Brettanomyces.

Portanto, ao observarmos e refletirmos sobre esta rápida contextualização histórica do surgimento do estilo Saison/Farmhouse Ale, é possível encontrar e/ou inferir ao menos um ponto de convergência entre o trabalhador do campo, que produzia sua cerveja no intervalo do inverno, quando a demanda por trabalho era menor e alguns trabalhadores urbanos da atualidade: os geeks, que dedicam parte de seu tempo, talvez nem tanto na produção, mas na disseminação da cultura cervejeira. Opção feita para aliviar o estresse a que muitas vezes são submetidos no ambiente de trabalho. Mas a mais importante relação entre o camponês e o geek é: seja no final do verão, da semana ou do expediente de trabalho, brindar e saborear uma boa cerveja é um dos prazeres da vida e garante bons momentos de celebração, seja da colheita ou da construção de um novo aplicativo.

Mas o que dizer da Wäls 42 Farmhouse Ale?  

A qualidade desta cerveja começa a se destacar pelo formato e o arrolhamento da garrafa, que se assemelha a uma garrafa de espumante. De fato, o método para abrir a garrafa é o mesmo dos espumantes. A rolha se solta com facilidade, fazendo o típico som de “estouro”, devido a ótima carbonatação, acentuada pela refermentação ocorrida na própria garrafa. Ao colocar no copo é possível apreciar sua cor dourada âmbar, uma certa perlage com bolhas pequeninas imergindo do fundo e sentir os primeiros aromas exalados.

No domingo que provei esta cerveja chovia muito, mas fazia calor, convidando ao deleite de uma cerveja especial e refrescante para atenuar os efeitos da temperatura e espantar o tédio que um dia como este pode proporcionar. O cheiro da chuva pode ter atrapalhado um pouco o meu olfato, mas foi possível apreciar com clareza aromas cítricos e frutados provenientes da carga de especiarias, entre as quais notei com mais evidência o limão e o abacaxi, embora na receita também estejam presentes amêndoas e café em grão. Este último aparece de maneira pronunciada num retrogosto delicioso proporcionado pela cerveja. Além das especiarias, ao meu ver nota-se a presença suave do nobre lúpulo checo, o saaz, que nesta cerveja é utilizado num double dry hoping, contribuindo para uma harmonização perfeita, para que além do aroma, possamos sentir a refrescância da cerveja. Na boca, a cerveja é seca e com baixo amargor, e é possível sentir leve acidez com uma picância discreta, certamente originária das especiarias e também do lúpulo. Como ocorreu a refermentação na garrafa, não se assuste com um pequeno depósito no fundo do recipiente.

Enfim, trata-se de uma cerveja muito agradável que conseguiu satisfazer a um cervejeiro que se considera um lúpulo maníaco, inclinado às cervejas com alto IBU. Apesar de não ser um lançamento, a Wäls 42 foi uma grata surpresa, acenando para um universo a ser descoberto.

Isto só foi possível porque depois de andarem um tanto sumidas das prateleiras das lojas, devido a problemas na distribuição após a cervejaria ser adquirida no início de 2015 pela gigante Ambev, parece-me que as cervejas da marca estão de volta. Esta questão me leva a continuar o texto, para também comentar sobre as startups da cevada.

O mercado e as startups da cevada

No início de 2015 o mundo dos cervejeiros caseiros e das microcervejarias brasileiras foi sacudido por uma notícia bombástica: a Ambev (via Boehmia) havia comprado e/ou se associado à mineira Wäls, uma microcervejaria de sucesso, premiada mundo afora. Nas redes sociais, ocorreram discussões acaloradas sobre o tema. De um lado, muitas críticas dos cervejeiros, acusando a Wäls de ter se vendido. Para muitos, esta decisão representava uma traição, já que a cervejaria era importante no contexto do movimento crescente das microcervejarias brasileiras. A Wäls havia sucumbido ao grande capital e todos se perguntavam: e agora, quem será a próxima a ser “cooptada” pelo gigante do mercado? Foi a Colorado, de Ribeirão Preto/SP. Segundo noticiou a imprensa, no caso da Wäls, mesmo após a união com a Ambev, a fabricação continuará sendo feita sob a direção dos irmãos e sócios José Felipe Carneiro e Tiago Carneiro. No entanto, a cervejaria fora anexada à Bohemia, de Petrópolis (RJ), mas as linhas de produção permanecerão independentes. Entretanto, para quem acompanha o movimento cervejeiro brasileiro estas aquisições não são novidades, mas por quê?

Assim como ocorre nos Estados Unidos a mais tempo, o mercado das cervejas artesanais e microcervejarias cresce a cada ano, ocupando espaços e lugares das grandes indústrias tradicionais do setor.

Lá na América do Norte, a AB InBev, nome internacional dado à empresa brasileira após grandes fusões internacionais. A primeira foi em 2004, entre a AmBev e a belga Interbrew, dona da Stella Artois, depois, quando passou a utilizar este nome, em 2008, ocorreu a compra da Anheuser-Busch, dona da Bud e maior fabricante de cerveja dos EUA, por nada menos que U$ 52 bilhões. Naquele momento, a AB InBev, proprietária da AmBev, se tornara a maior fabricante de cerveja do mundo.

Entretanto, como dito acima, nos EUA o mercado das grandes cervejarias vem perdendo espaço para as microcervejarias e, segundo alguns analistas, este cenário pode ter se acentuado devido o controle de uma marca tradicional como a Bud passar para as mãos de estrangeiros. Alguns estadunidenses nacionalistas não gostaram desta história e passaram a consumir cervejas locais e regionais. Some-se a isto, as mudanças culturais, a organização, a mobilização e a criatividade das microcervejarias estadunidenses, mecanismos que certamente favoreceram o crescimento do setor.

Entre 2009 e 2014, enquanto a produção das marcas tradicionais caía 13,7% nos Estados Unidos, as cervejas artesanais cresciam 141%. Foi aí que a AB InBev decidiu pelo óbvio e parou de brigar com os fatos, comprando quatro pequenas cervejarias nos Estados Unidos – Goose Island, Blue Point, 10 Barrel e Elysian. É interessante relatar que até aquele momento, a InBev investia em campanhas de marketing que atacavam as microcervejarias.

No Brasil, atualmente a participação da indústria de microcervejarias e cervejas artesanais é de cerca de 2% do mercado, mas, considerando as atuais taxas de crescimento o cenário é promissor, com uma expectativa de que este índice chegue ao menos a 10% no longo prazo. Com números crescentes e tão interessantes, é evidente que as grandes indústrias cervejeiras não queiram ficar de fora deste filão. Mas, será que as aquisições e a entrada do grande capital neste mercado representam algum risco ao “movimento cervejeiro” brasileiro?

Para responder à pergunta acima poderiam ser colocados muitos condicionantes, mas não vou me ater aos inúmeros “senões” da questão. Uma perspectiva positiva do cenário, é que as grandes corporações têm mais condições de investir em novas tecnologias, redução de custos de produção, distribuição e marketing, favorecendo o crescimento do setor. Permanecendo a qualidade dos produtos, isto faria bem para os consumidores acostumados às marcas.

Por outro lado, umas das principais características das startups da cevada é a dinamicidade, permeada pela criatividade, pela inovação e pela relação muito próxima com seus consumidores, normalmente regionais e locais. Além da utilização de ingredientes sazonais e regionais. Some-se ainda o fato de que a relação próxima ao consumidor permite que as microcervejarias e cervejarias artesanais construam relações identitárias com seus “clientes”, que procuram um produto que preserve o charme, a exclusividade e que represente a vivência e a cultura da empresa no lugar onde estão estabelecidas. Neste sentido, acho improvável que o mercado tenha fôlego, interesse e condições de abarcar toda esta dinâmica, comprando uma cervejaria após a outra, até porque a cada dia surgem novos empreendedores, abrindo suas startups da cevada, criando, inovando, crescendo e conquistando seu espaço. Apesar da crise, este jargão tão usual no Brasil atual, o mercado das cervejas artesanais cresce a passos largos.

Samuel Cavalcanti, líder da Cervejaria Bodebrown de Curitiba e ilustre representante deste cenário, vive repetindo: “Viva la revolución!”. Pois bem, é este o espírito. Que a revolução continue! Cheers!